Diz um antigo ditado que as águas demasiado puras não têm peixes.
Eu, cidadão europeu do século XXI, o que digo é que é castradora uma
sociedade asséptica e refém do politicamente correcto.
Ocorreu-me esta reflexão a propósito dos incidentes com manifestantes que
protestavam à porta da praça contra a realização da tradicional corrida de
touros por ocasião das festas populares de Alcochete.
Há algum tempo, fui com um amigo a um esgotado cinema de Lisboa ver um
documentário acerca da pesca no Mar do Norte. Parece que era utilizada
uma peculiar técnica de filmagem com câmaras fixas no barco e aquilo
acabou premiado. Do que vi, retenho uma enorme orelha de pescador que,
em plano único, se mostrou durante uns três minutos e dezenas de peixes a
serem esventrados, decapitados e outros, fora de água, agonizantes e à espera.
Não valerá a pena grandes elaborações acerca da violência e das suas
diversíssimas representações. O plano que me parece relevante analisar é o
da mera liberdade.
Devo eu, por não ser capaz de achar sentido ou ver a beleza de uma
expressão artística tentar impedir que outros a apreciem, incomodar-me com
a sua existência ou manifestar-me em favor da sua proibição?
Bem sei que é tentador ceder aos esteriótipos de uma direita ignorante e
trauliteira versus uma esquerda jactante e urban chic. Mas, mesmo a dar-se
o caso de assim ser, sempre digo, sinceramente, que a mim me incomodam
tanto uma como outra. Que é nada!
Um povo que viveu tanto tempo em ditadura com o culto do gosto único dos
três F´s (Fado, Futebol e Fátima) tem obrigação de defender, consagrando
em lei, a tolerância e a liberdade. Por isso, acredito que enquanto existir uma
democracia no meu soberano país, no pleno exercício da minha cidadania,
eu serei livre para escolher ir ver um combate de boxe, que até é modalidade
olímpica, um documentário de pesca que não entendo, ou essa manifestação
de portucalidade que é uma corrida de touros. A questão é que, se aqui me
sinto muito mais a gosto e estou a participar numa actividade, igualmente
legal, que faz parte da matriz cultural em que fui educado, porque tenho eu
de ser incomodado e agredido para aceder ao meu lugar de simples
espectador?
Joaquim Varela do Nascimento
Ervedal-Avís