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A miúda do bairro de lata - Soliloquio

Mais um excelente texto de Jesus Lourenço intitulado " A miúda do bairro de lata-Soliloquio"
17 de Setembro de 2013 - 21:18h Pensamento por: - Fonte: Taurodromo.com - Visto: 2605
A miúda do bairro de lata - Soliloquio

Não estou atrasado - e não, porque quando um amigo parte e Ele me está no coração eu não me atraso, simplesmente por nunca ter deixado de estar comigo. Quando essas terríveis fatalidades têm lugar, interiorizo-me, passo à reflexão e oração enfim, o retiro mental não me permite perder qualquer Amigo porém, sempre reajo mais tarde. Nunca tenho pressas – talvez para o sentimento da saudade eu não tenha um antidoto tão eficaz! Isso sim, é o que me consome!

De qualquer modo, também não iria para aqui escrever sobre tão preclaro e distinta figura – e não, por não me reconhecer com qualidade para semelhante desenvolvimento. Comandante da Marinha, crítico tauromáquico irrepreensível, justo, erudito e, mais que tudo, prenhe de humanidade.

Se eu não escrevo, quem melhor o poderá fazer por mim? – Ele mesmo, como tão bem o fez em centenas de crónicas ao longo de uma bonita e bem preenchida vivência.

“Soliloquio”, por bem, era sobejamente conhecido quer no meio tauromáquico, quer nos escaparates nacionais; terão sido muito perto de quatro dezenas de primorosas obras assinadas por si de um modo tão válido e bonito!

Desta vez, pretendo enobrecer o facto do epitetismo se disponibilizar ao substantivo e assim, reconhecer, entre todas, duas obras de cariz mais íntimo e claro, assinadas por Cristóvão Moreira, o, próprio, ficando então, “Sólilóquio” na reserva: “UMA VELA NA ESCURIDÃO” e CORAÇÃO NÃO TEM COR”. Eu tenho estes dois livros aliás, tenho todos mas, é do último destes mais repuxados ao seu âmago que quero extrair e explanar somente sobre uma das crónicas, sobrelevar quanto sentimento o caraterizava, ou a riqueza de alma, ou a profunda humildade, ou a sapiência taurina que dominava.

 

A MIÚDA DO BAIRRO DA LATA

 

(Sic) - A miúda suja, magra, esfarrapada, feita Maria-rapaz conseguiu burlar o porteiro, esgueirar-se ao fiscal, instalar-se enfim numa nesga da bancada a abarrotar. Ficou a meu lado. Os olhos arregalados pareciam espantadiços do sol, da cor, da violência que adivinhavam.

Saiu o touro. Do ímpeto que trazia correram ao abrigo dos burladeros os peões de brega. Senti as mãos da miúda crisparem-se no meu ombro. Escondeu a cabeça no meu peito. Chorava.

- Tens medo?

Tinha. Não respondeu, mas eu via nos seus olhos que tinha.

- Como te chamas?

- Teresa.

- És de Vila Franca?

- Sou. Moro ali no Bairro da Lata.

- Ribatejana ainda por cima, e com medo! Não chores, vais ver como o touro não faz mal a ninguém.

A praça ficou silenciosa. Esse silêncio da multidão que espera quando sabe que tem razão para esperar. O cavaleiro vinha do outro lado da arena, levava a montada até onde o inimigo começava a sentir que podia tê-la ao seu alcance. Quando por fim o touro arriscava uns passos fora do amparo das tábuas, como se medindo o proveito da investida, ouvíamos o “Califa” bradar: «Quieto!». E ele detinha-se, ficava olhando o Mestre a afastar-se. Outra vez João Núncio levava o Temporal caminho do inimigo, de novo lhe sustinha o galope curto, no desafio à arrancada. O touro balanceava a cabeça, hesitante se atrevia a sair um pouco mais da querença. E outra vez aquela voz, calma, persuasiva, que parecia a aconselhá-lo: «Quieto». E quieto se quedava outra vez o touro negro, vendo afastar-se o cavaleiro.

Foi assim duas vezes, três vezes, as bastantes para que aos poucos se fosse o touro colocando no terreno que escolhera o toureiro, que lhe ordenara essa sua voz a cujo sortilégio não houvera remédio senão obedecer. Então João Núncio partiu no Temporal, investiu o touro ao que julgava ser presa sua. E ao cravar da farpa rebentou numa ovação aquele murmúrio emocionado do povo, murmúrio que dir-se-ia contido só para que pudesse o touro ouvir a voz do «Califa», desse toureiro ímpar que obriga os touros a entenderem a linguagem da sua arte.

 

Haviam secado as lágrimas dos olhos da miúda do Bairro da Lata. Em sua face magra se abria um sorriso. As mãos não estavam mais crispadas em meu ombro, batiam palmas como os outros milhares de mãos que batiam palmas.

- Vês como já não tens medo?

- Não senhor, não tenho.

Não tinha. Eu via em seus olhos que já não tinha medo.

As coisas belas não metem medo a ninguém.

 

Lisboa, 9/7/61

 

Esta prosa já estava preparada para o meu livro, mesmo antes da estúpida ocorrência. O que fazia ela reservada à espera do quê e por quê?! Não fazia algum sentido.

 

Curiosamente, recordo-me perfeitamente desta corrida, segundo a data do autor, eu tinha 19 anos, embora muito novo já era um forcado de referência no Grupo Amadores Académicos de Santarém, já estava sinalado pela paixão à causa, já tinha alguma autonomia ao entendimento da matéria, e era listo quanto à leitura comportamental dos touros.

Naquela célebre corrida na secular e castiça praça de touros “Palha Blanco”, domingo de “Colete Encarnado”, Mestre João Núncio levava 60 anos bem escorridos, lidava touros com o seu próprio ferro, e “Urquijo” como proveniência, toiros que se prestavam muito bem para aquele tipo de toureio o que, somente o grande Mestre sabia praticar e interpretar. João Núncio com a idade, experiência e saber, já não alinhava em correrias, procurava antes a conveniência assertiva com tempos, tranquilidade e serenamente evoluía com os seus propósitos logo, os resultados finais eram surpreendentes e de fantástica fascinação!

Não penso errar, ao dizer que peguei ainda três touros lidados por Ele – não tenho ideia que ferro tinham -, foram três voltas em apoteose – bons abraços, aqueles.

Com aquele género de lide, os touros, sobretudo os referenciados, bem encastados que eram, tinham por hábito deixar muitas marcas aos valentes forcados – com aquele ferro peguei alguns e, safei-me sempre felizmente.

 

Que melhor homenagem poderia eu fazer a quem entregou a alma ao Divino? Pois lá do alto, muito alto, lá dos infinitos céus, dos lugares reservados por Deus para os justos, atento, o Omnipotente olha e crê na verdade dos homens bons e bem-aventurados. Descansemos pois, por sabermos estar o nosso eterno Amigo bem recomendado - Louvada seja a sua alma.

 

Esta prosa já estava preparada para o meu futuro livro, mesmo antes da estúpida ocorrência… o que fazia ela reservada à espera do quê e para quê?

Saudações Taurinas.

 

(Prosa escrita obedecendo às regras do novo acordo ortográfico.)

   

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