1ª Parte
Agradavelmente, eu recebera um convite para ir à feira da Golegã, era domingo dia 10 de novembro, véspera do dia de São Martinho. Álvaro Coelho e os irmãos Júlio e Vitor Pinheiro, estes últimos, conhecidos emboladores tauromáquicos e eu, lá fomos todos lampeiros direitinhos à festa… embora a minha tibieza física de circunstância!
Clima a calhar para o propósito, disposição assertiva – para Eles - e, eu a fazer os possíveis por acompanhar Amigos plenamente predispostos a enfrentar um dia que à partida se adivinhava com fantástica agradabilidade – por outras palavras: bem recetivos às oportunidades que eventualmente nos pudessem surpreender.
Comemos à vara-larga, gozámos, rimos e admirámos tudo o que se nos deparou qual crianças em primeira visita ao Walt Disney, acima de tudo o bom que o histórico, tradicional, cultural e mediático evento nos ofereceu aliás, como ao mais elevado número de turistas nacionais e estrangeiros que quase peregrinamente sempre frequentam aquela manifestação com devota paixão pelo nobre e venerado rei da festa, como é o caso do cavalo.
Ao almoço, o empregado de serviço apresentou-nos a conta: 74 Euros; após a evidente reclamação seguida de minuciosa análise, reduziu-se o estrago para 54 Euros! Infelizmente é este tipo de turismo que, em muitos lados, ainda se pratica no nosso País e que a meu ver, deveria ser vigiado mais de perto pelas autoridades competentes!
Não fora nada estranho rematarmos o dia em casa de Ricardo Chibanga, era esse o nosso primordial rumo.
Terá sido na antiga cidade Lourenço Marques, capital de Moçambique, onde aquela grata figura do toureio nasceu em 8 de novembro de 1942, mais propriamente, no suburbano mas, histórico Bairro bem africano da Mafalala, o mesmo que eu lograra conhecer perfeitamente e que lhe fora berço, além do referenciado, de outros símbolos de viso nacional ali tiveram casa, a recordar: os Presidentes Samora Machel, Joaquim Chissano, o primeiro-ministro Pascual Mucumbi, o grande poeta José Craveirinha, os ídolos da bola, Eusébio da Silva Ferreira, Fernando Hilário e Augusto Matine, estes bem idolatrados no mundo futebolístico.
Convivi muito de perto também com o pai Paulino Chibanga, um simpático madala* de cabelos cãs, tez refegada onde sobressaíam dentes alvos fazendo jus aos muitos lustros já vividos – infelizmente desaparecido há anos -, ainda me recordo hoje, de o ver vestido de casaco branco a servir às mesas como empregado de referência da antiga e notável pastelaria/restaurante “Princesa” na Av. 24 de julho, na cidade das acácias rubras e jacarandás lilases que medram generosamente da fértil e odorosa terra ocreosa – pela origem do óxido de ferro, o que lhe dá a cor avermelhada.
Na bem frequentada esplanada em que Ele também servia e, quando me perguntava: - o que vais pidir patrão*? E eu pedia algo e acrescentava: se servires rápido, ao fim levas um saguate* que até ficas admirado… e risonho, subtil, gestos elegantes afastava-se. Logo voltava com o pedido e, quando eu pagava e… o bonificava com cinco tostões moçambicanos:
- Chi patrão, só quinhenta»?! Interrogava-me surpreendido.
- Estás a ver Paulino, eu não disse que ficavas admirado.
Claro que depois o saguate era generoso. Com o sorriso de orelha a orelha lá vinha a resposta:
- Os mulungo* tens maningue* canganhiça*! -
Era um querido o nosso Paulino e, por isso mesmo, tínhamos sempre a preocupação de ocuparmos mesas destinadas ao seu serviço.
Quem não conhece hoje, mesmo não sendo muito dado a estas coisas da tauromaquia, o nome de Ricardo Chibanga “ El Africano”, o toureiro negro?! A popularidade que granjeou a partir do ano de 1962 terá sido mais um fenómeno dentre país, mesmo em Espanha, França e por esses mares afora!
A Golegã, a sua terra adotiva, entretanto prestou-lhe vassalagem, registando uma rua com uma placa toponímica, onde se pode ler «Ricardo Chibanga (Matador de Touros)».
É o nosso visado, extremamente popularizado no mundo taurino com o epíteto de “El Africano”.
Como autor destas linhas, não precisarei favores para biografar a sua extraordinária existência, não necessitarei de recorrer a ninguém ou apoiar-me em coisa alguma.
Eu próprio visitei muito aquele mítico bairro e, por curiosidade, ao que me recordo, duas das vezes foram com o caríssimo Eusébio da Silva Ferreira.
Ali, os mufanitas iam à escola descalços, como jogavam à bola, enfim, faziam tudo assim - eram os seus modos de vida. Conquanto, a natureza a muitos marcou-os bem – em bom sentido, já se vê.
O Ricardo não ia muito em futebóis, não deixando em tempo de adolescência, descalço, ter sido apelidado de “Pássaro azul” enquanto guarda-redes e em jogos de bairro, primeiro com bolas de trapo e depois de borracha quando defendia e sofria muitos golos de Eusébio, até de outros com quem brincou.
No Mafalala, ainda nascera outro nome que viera engradecer o toureio nacional, este enquanto bandarilheiro: Carlos Mabunga “Bigodes”, igualmente terá repartido a mesma escola, as mesmas brincadeiras, a mesma bola, os mesmos sonhos com o Ricardo.
Quando se aproximaram dos seus 17 anos é que começaram-se a influenciar com as corridas de touros.
Tudo começara com um vila-franquense que, já há muito havia saído da sua terra e partido para Lisboa e, só mais tarde, é que rumou direito a Moçambique e, para aquele bairro para aonde terá ido residir, casando e fazendo família. Estou a falar do também muito Amigo, infelizmente já falecido há muito: Fernando Pinheiro, embolador de profissão e que viveu muitos anos na capital de Moçambique e, entretanto, veio a falecer em Lisboa já após a mal-amanhada descolonização!
Ricardo e “Bigodes” começaram voluntariamente a prestar colaboração na praça de touros em serviços menores, no sentido de lograrem entrada para as corridas e isto, já influenciados por todo o fantástico aparato bem natural do espetáculo. Quem os queria ver, era no tauródromo, com ou sem espetáculos!
Com os bandarilheiros radicados de reconhecida categoria, os que treinavam, como no caso: Carlos Raimundo, Carlos Pereira, Jorge Nunes, Ludgero Serrano e ainda, o vila-franquense Bruno da Costa “Ortega” este último já no tempo, antigo novilheiro, e muitos outros que lá iam tourear e que, ali faziam escola; os referenciados rapazolas, aos poucos, lá foram entrando no esquema e de salão foram-se iniciando aliás, como os naturais, Furtado e o Vedor que igualmente chegaram a entrar nos complexos meandros do toureio quando gradualmente começaram a ser postos diante das vacas e assim, dando asas a sonhadoras ilusões!
Na Monumental taurina, por vezes também eram criados alguns eventos de circunstância, embora de responsabilidade reduzida e com toureiros de improvisada classe, o quem veio a permitir a estreia pública na modalidade do ansioso par primomovente a toureiros – de um modo absolutamente primário, compreenda-se!
Eu naquele tempo ainda não chegara a Moçambique, não poderei relatar em pormenor todo o recorrido todavia, basta para adivinhar quantos anseios, entusiasmo e medo aqueles dúbios-projetos a toureiros mostraram na frente das rezes bravas. Não importa aqui deixar esclarecido se estavam mais tempo em pé ou deitados, se mais no ar ou pendurados nos cornos das bestas, interessa sim, é que sem nada saberem criavam público ao ponto de se organizar mais eventos compatíveis à proposição! Terá sido agradável a apresentação, sobretudo, pelo fantástico e arrepiante valor que a parelha demonstrava! O medo era superiorizado por intrínsecas vontades.
Curiosamente e para que se saiba, os pretendentes a matadores na falta de trajes curtos, estrearam-se improvisados de toureiros trajando à campino… é o que havia!
Dali em diante, fizeram-se muitos mais eventos de variedades, o que lhes permitiu praticarem muito mais.
O empresário tauromáquico, ganadeiro e proprietário do célebre e carismático restaurante “Marialva”, na época, era o queridíssimo Amigo Feliciano António, também já há muito ausente do nosso seio, o antigo bandarilheiro e mais célebre “Charlot” do toureiro cómico português, o mesmo, que na sua machamba (propriedade agrícola e ganadaria) amiúdo, disponibilizava a matéria-prima para mais treinamentos – eu próprio depois de lá chegar, logrei com isso, principalmente pelo gozo meramente pessoal.
Os rapazolas não viam outra coisa que não fosse tudo o que tivesse ligado ao espetáculo de touros: além de treinarem com afinco e paixão, ajudavam no que era necessário na praça em tempos mortos e mais: auxiliavam na feitura das bandarilhas e vendiam-nas nas bancadas, colaboravam na embolação dos touros, limpavam a arena das ervas e até, fizeram muitas das vezes de campinos na recolha dos touros com os cabrestos enquanto as corridas. É obra.
Com a ida das grandes figuras toureio a atuarem em Lourenço Marques, Manuel dos Santos e Diamantino Viseu em 1962, acompanhados também pelo célebre empresário taurino Alfredo Ovelha, foi de brutal acréscimo o entusiasmo na tauromaquia provincial e por consequência, igualmente redobrou o crer e o arrebatamento de alma daqueles jovens pretendentes a toureiros.
No meio de tudo, ter-se-á criado um consertável interesse em trazer os jovens ao Continente, para tal, Fernando Pinheiro teve muito a ver com esse protocolo pois, era de facto o Amigo, protetor e mentor com quem Eles sempre contaram.
Foi então que o Governador da Província, General Sarmento Rodrigues foi posto ao corrente e muito assediado afim, de facilitar e promover as necessárias viagens.
Até que aconteceu mesmo e, a meados de setembro do mesmo ano, o empresário Alfredo Ovelha assinou o termo de responsabilidade e os jovens voaram pela Força Aérea” até Lisboa.
Vinham somente por três meses, era coisa mais comparável a uma viagem de estudo, se assim se pudesse chamar!
Segue no próximo artigo…
*Madala: Velho/ ancião/ respeitoso) avô; Patrão: Senhor/deferência; Saguate: gratificação/
gorjeta; Mulungo: Senhor/branco/Deus; Maningue: muito; Canganhiça: malandrice/, engano/ludíbrio/ ratice.
(Texto escrito segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico).