Islera. Tragédia: a materialização do perigo. Não há qualquer dúvida que o perigo está sempre iminente numa corrida de toiros, o problema é que o aficionado, sentado confortavelmente na bancada, muitas vezes tem o perigo à frente dos olhos e não o consegue ver. Também não há qualquer dúvida que o ultimo desejo do aficionado é que a tragédia ocorra, o problema é que apenas se vê verdadeiramente o perigo quando se dá a tragédia. Infelizmente, todos os anos se dão tragédias dentro das arenas, muitas delas bastante graves e sinistras, é uma iminência à arte de tourear e aquele que se veste de luces tem de saber conviver com ela. Desgraçadamente, as tragédias são necessárias para relembrar ao público dos toiros, que tourear é mais do que lances de capote e de muleta, tourear é enfrentar o perigo com um pano na mão, sem qualquer tipo de protecção e criar arte usando como matéria-prima um animal agressivo e com um poder em nada comparável ao do toureiro. A tragédia serve para relembrar ao pagante “fervoroso consumidor de grandes faenas” que a bonita dança que o toureiro cria ao embeber as violentas investidas do seu oponente está carregada de um enorme perigo, do qual o matador se tem de abstrair para criar toureio e agradar ao público.
Islera. Quem consegue esquecer a imagem da boca de Julio Aparicio a ser perfurada pelo piton do jabonero de Juan Pedro Domecq? O olho de Juan Jose Padilla a sair da orbita na colhida onde o toiro de Ana Romero destroçou a cara ao toureiro de Jerez? A imagem de pânico de Israel Lancho quando flutuava com o piton de um Palha introduzido na sua caixa torácica? A trincheira de Aguascalientes lavada de sangue no dia da trágica colhida de Jose Tomás? Todas elas são imagens difíceis de esquecer. Nos dias seguintes a estes acontecimentos não há aficionado que não fale na dureza intrínseca à arte de tourear, não há revista, site ou blog que não publique artigos relembrando o perigo inerente a cada lance de muleta, a cada par de bandarilhas e a cada pega de caras. Mas este sentimento de compaixão e esta valorização das capacidades físicas e mentais dos toureiros permanece pouco tempo na memória dos aficionados, apenas subsiste até se comprar o bilhete para a próxima corrida de toiros. A partir daí tudo se volta a enfocar na possibilidade de nessa tarde haver grandes faenas, esquece-se o perigo e apenas se fala no momento que atravessa a ganadaria e os toureiros de modo a tentar antever o que pode acontecer. Assim é a sociedade consumista dos dias de hoje.
Islera. Muitos são os exemplos de tardes onde o aficionado, “fervoroso consumidor de grandes faenas”, se sentou nas bancadas desejoso de ver bom toureio e desgraçadamente saiu a falar no trágico acidente que ocorreu. Assim é a verdade desta festa, um teatro onde reina o improviso e no qual tudo acontece de verdade. Mas há uma tarde de tragédia que certamente é das que mais se destaca em toda a história da tauromaquia, a tarde de 28 de Agosto de 1947 em Linares. Como em todas as corridas onde se anunciava “Manolete”, o “monstro” do toureio, havia uma enorme expectativa. Praça “llena hasta la bandera” para ver a máxima figura do toureio frente à mais dura das ganadarias consideradas “duras”: Miura. Um cartel difícil de conceber nos tempos actuais, assim era a “afición” nessa época, exigia-se às figuras que enfrentassem toiros de todos os encastes e aquele que triunfava com as duras tinha mais mérito e ganhava a admiração dos aficionados.
Islera. Reza a história que “Manolete” não teve possibilidades frente ao seu primeiro mas que ante o segundo ofereceu aos seus seguidores tudo aquilo que eles esperavam quando se sentaram nos tendidos. A afición de Linares rendeu-se aos encantos do toureio do maestro de Córdoba que, como quem tira água de um poço seco, arrancava muletazos a um Miura complicado. Com tal forma de tourear diante dos olhos, os presentes nessa corrida facilmente se terão esquecido do perigo que corria “Manolete” a cada muletazo, no calor da emoção dificilmente alguém ponderaria a possível tragédia. Desgraçadamente ela ocorreu! Manuel Rodriguez, depois de encher os corações à afición de Linares com uma faena ao seu irreverente estilo, entra a matar cheio de confiança. Escolheu a sorte contrária mas também contrário seria o seu destino, já que a entrada da espada na cruz do Miura seria simultânea à entrada do piton direito do Miura na sua perna esquerda. Rapidamente o toiro tombou para um lado e o toureiro o mesmo fez para o lado oposto. Foi o fim de uma das máximas figuras de sempre no toureio a pé.
Islera. Esse quinto Muira da fatídica tarde de Linares, um negro entrepelado bragado, tinha, como é óbvio, uma mãe. Uma mãe que o criou com o mesmo carinho que a mãe que cria um toiro de indulto, uma mãe que se tornou famosa devido ao ocorrido na tarde de Linares, uma mãe que tem a cabeça embalsamada no museu da Real Maestranza de Sevilla, uma mãe que representa o perigo da festa, uma mãe que relembra aos aficionados as tragédias que podem ocorrer num ruedo, uma mãe que se imortalizou no tempo e na história, uma mãe que é muito mais que uma vaca brava é o símbolo da verdade da festa dos toiros: Islera, nº 226 de D. Eduardo Miura.