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António Peças - O cirurgião e ex-forcado fala sobre as condições do suporte médico nas praças

Antigo forcado, já retirado e médico cirurgião expressa a sua opinião sobre as condições de suporte sanitário nas nossas praças, o que está bem e mal, e do que (pouco) se tem feito para remediar a situação
19 de Setembro de 2017 - 17:24h Notícia por: - Fonte: Taurodromo.com - Visto: 3171
António Peças - O cirurgião e ex-forcado fala sobre as condições do suporte médico nas praças

Em jeito de "grito de alerta", António Peças chama a atenção para as condições que existem nas praças para prestar assistência aos que se possam lesionar durante uma corrida de toiros. Deixou nas redes socias um "desabafo" que, no mínimo, nos deixa a pensar. Deixamos a publicação para os nossos leitores.

"As mortes dos forcados Pedro Primo e Fernando Quintela deixaram consternados o país em geral e os aficionados em particular.
Confesso que, enquanto ex-forcado e médico cirurgião, me sinto particularmente sensibilizado e revoltado com a perda destas duas vidas.
É precisamente por esse motivo que, na véspera do funeral do Fernando Quintela, após muitas horas de reflexão, decidi escrever este texto. Não o poderia deixar ir embora sem o escrever.

Não posso calar a minha indignação por tudo aquilo que, no que à segurança dos artistas em geral e dos forcados em particular, nomeadamente às condições (in)existentes nas enfermarias da quase totalidade das nossas praças de touros, diz respeito.
Abordo este assunto porque dele tenho vasto conhecimento: fui forcado durante dez anos, participei em várias reuniões da ANGF em que este assunto foi ventilado e já por diversas ocasiões fui médico de serviço nas enfermarias de várias praças de touros fixas e nalgumas praças de touros móveis.
Recordo-me perfeitamente de ter participado em várias reuniões da ANGF, algures entre 2001 e 2005, enviado como representante do então Cabo (Hélder Queiróz) do meu grupo de forcados, o Aposento da Moita do Ribatejo.
Enquanto médico o meu único foco foram sempre a questão da segurança (as “bandarilhas à espanhola”) e as condições das enfermarias das praças de touros. Todos os participantes nessas reuniões não me deixarão mentir quando tal afirmo. E todos sabem perfeitamente qual a importância que na altura foi dada às minhas preocupações. Alguns dos então dirigentes da ANGF chegaram, em mais do que uma ocasião, a solicitar ao Hélder Queiróz que não me enviasse às reuniões, devido ao desconforto que constituía a minha abordagem repetida às questões acima referidas.
Hoje, passados mais de dez anos, pergunto: o que foi feito nesse sentido?
Tendo o Decreto-Lei n.º 89/2014, que aprova o Regulamento do Espectáculo Tauromáquico, sido aprovado no dia 11/6/2014, quem é que o cumpre no que às competências do médico e do enfermeiro diz respeito? E quem é que o cumpre no que ao material que OBRIGATORIAMENTE tem que estar disponível nas enfermarias?

Há mais de dez anos que sei do que falo e de todas as vezes que fui médico de uma enfermaria numa praça de touros fixa ou numa praça portátil não só cumpri o decretado no que ao material diz respeito como, inclusivamente, fui portador de material acrescido que penso poderá ser necessário.
Que o digam os senhores inspectores do IGAC com quem, em Maio, me cruzei à tarde em Coruche e à noite na Moita do Ribatejo.
Sou cirurgião, possuo a competência em emergência médica pela Ordem dos Médicos, sou médico de VMER e dos helicópteros de emergência médica do INEM.

Os enfermeiros que comigo trabalharam, salvo pontuais excepções, possuíam as competências exigidas no Decreto-Lei!
E sempre me fiz acompanhar pelo José Ribeiro da Cunha, ex-cabo do grupo de forcados de Coruche, tripulante de ambulâncias de emergência médica do INEM e possuidor de um grande à vontade dentro de praça. Esta situação, por muito descabida que possa parecer a alguns, é fundamental em determinadas situações, nomeadamente porque o primeiro contacto com a vítima deve ser realizado por pessoas conhecedoras das regras fundamentais da abordagem a um traumatizado. 

Quem já nos viu trabalhar observou que nos dirigimos de imediato para dentro da praça, para junto da vítima, ao contrário daquilo que se verifica na grande maioria das situações, ou seja, a equipa médica a aguardar pelas vítimas dentro da trincheira ou na enfermaria. Os médicos sabem que, nas situações graves, todos os segundos contam!
Posto isto, quando leio as afirmações dos senhores José Luís Gomes e Paulo Pessoa de Carvalho não posso deixar de ficar incrédulo!

Não têm conhecimento do referido Decreto-Lei???

O Sr. José Luís Gomes foi cabo do grupo de forcados amadores de Lisboa durante muitíssimos anos, é pai do actual cabo (que, por sinal, já sofreu uma lesão gravíssima enquanto pegava), é dirigente da ANGF e afirmou, passo a citar, "as enfermarias [praças de toiros] têm que estar devidamente apetrechadas com suportes, mesmo à porta, para este tipo de casos (colhidas). Era importante ter logo ali um veículo que estabilizasse o forcado"?? Dedo na ferida…?!? O que era importante era fazer cumprir o Decreto-Lei!!! Lá está pasmado tudo aquilo que uma enfermaria tem, OBRIGATORIAMENTE, que possuír! E não se cumpre porquê? E o que fez a ANGF para que seja cumprido? Ou o que fez o Sr. José Luís Gomes para que seja cumprido nas praças onde organizou corridas de touros? Ou, porque em Cuba nenhum dos grupos era associado, o que aconteceu não é da incumbência da ANGF? Continuem-se a discutir os vetos, que é assunto muito mais importante…!

Quanto ao Sr. Paulo Pessoa de Carvalho, que não é médico, com que conhecimento afirma que “infelizmente os acidentes que aconteceram, não era uma enfermaria por melhor que fosse que iria salvar uma vida. Lamentável estas mortes que a todos nos marcaram, mas quis o destino que as colhidas tivessem tido consequências para as quais a medicina e a capacidade de intervenção humana, não está preparada para uma resposta como gostaríamos”?? Pergunto: quanto tempo demorou o oxigénio a chegar à enfermaria? E o aspirador de secreções? E quanto tempo demorou a chegar o apoio diferenciado (VMER de Almada) à praça de touros da Moita?? Vai-se exigir a presença de uma VMER em cada praça de touros porque o Regulamento não é cumprido? Ou vamos continuar a deixar que o “destino” se encarregue de exercer a sua função??

E como explica que, perante a questão “será que se descurou a segurança dos intervenientes num espetáculo tauromáquico?” tenha podido responder “não acho de forma alguma que isso tenha acontecido, posso mesmo dizer que aconteceu o contrário, a segurança cada vez mais está e esteve neste caso, na ordem do dia. Evoluiu-se muito mesmo, mas não podemos esquecer que esta é uma atividade de enorme risco e por mais que a prevenção seja boa, os acidentes graves acontecem infelizmente”? Evoluiu-se?? Nas enfermarias e na exigência das competências das equipas médicas?? A sério?? E o que fez a Associação Portuguesa de Empresários Tauromáquicos, da qual o Sr. Paulo Pessoa de Carvalho é presidente, para que as medidas obrigatórias fossem implementadas?? 

Contam-se pelos dedos de uma mão os empresários que se disponibilizaram a contratar os nossos serviços! 300 ou 400€ são uma exorbitância! Mas depois diz-se que uma vida não tem preço...

Não parecerá estranho que tenham morrido mais forcados em Portugal do que matadores de touros em Espanha nos últimos anos?? Principalmente sabendo todos nós da gravidade de muitas das colhidas sofridas pelos matadores de touros naquele país?! Será obra do “destino”, garantidamente…!

Parece-me curioso que, segundo parece, estando em curso uma queixa à Ordem dos Médicos sobre a colega que fez afirmações completamente lamentáveis sobre a morte do Pedro Primo (e eu não poderia estar mais de acordo com a referida iniciativa!) ninguém ainda tenha adoptado semelhante conduta relativamente aos médicos que colocam uma vinheta comprovando a existência das condições exigidas no Decreto-Lei n.º 89/2014!! Parece-me gravíssimo que tal suceda! E penso que, mais cedo ou mais tarde, a Ordem dos Médicos, o Ministério da Saúde ou o IGAC terão que tomar medidas objectivas sobre este escândalo.

Estou consternado, repito, com a morte do Pedro e do Fernando.

Mas mais ainda com o “sacudir a água do capote” que se constata por parte de quem tantas responsabilidades deveria ter, com a inoperância das entidades responsáveis por fazer cumprir o Regulamento e, pelo andar da carruagem, com a certeza de que, se o “destino” assim o entender, mais Pitós, Primos e Quintelas continuarão a ir-se embora sem que nada de concreto seja feito para o tentar evitar… 
É esta a forma como se trata um dos espectáculos culturais que mais público arrasta e que mais receitas gera ao país!

Pobrezinha tauromaquia a nossa!!"

 

Foto: D.R.

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