O Touro Bravo, esse Esplendor
No âmbito de funções que exerci, tive oportunidade de visitar uma central nuclear na Suécia. Situava-se numa península e, para o seu funcionamento, utilizava água do oceano dum lado que despejava no outro. Antes da sua existência, à boleia da corrente quente do Golfo do México, todos os anos chegavam àquelas costas uns peixinhos garridos que, depois de cumprida a migração, regressavam às suas origens tropicais. Com a central, passaram a ficar em permanência no lado da península onde a água era despejada e se mantinha quente em resultado da sua utilização no arrefecimento dos reactores.
Ao jantar, atirou-me o director da central: “Então, quando é que vocês lá na Península Ibérica acabam com a barbárie das touradas?”
Incomodado com a deselegância, observei-lhe que os romanos é que começaram por estabelecer uma dicotomia entre bárbaros e civilizados. Os que, como os ibéricos, já eram capazes de processar os alimentos e tinham por isso acesso a pão e vinho eram civilizados. Aqueles que, como os nórdicos, recolhiam, caçavam e consumiam os alimentos por processar eram os bárbaros. E, na Península Ibérica, o que tinhamos feito, isso sim, era apurar um descendente directo do auroque original através da selecção de uma característica psicológica que é a bravura e, com isso, assegurámos que não se extinguia um animal sem outros préstimos diferenciadores. Se, com o meu gosto pelas corridas de touros, eu havia interferido com a natureza tinha sido para preservar esse animal magnífico que é o touro bravo. Já ele, com a sua actividade, tinha actuado em sentido contrário, alterando mesmo a natureza ao arraçar em bacalhaus uns simpáticos peixes mexicanos.
Depois informei-o ainda das duas diferentes versões ibéricas da “sorte suprema” na lide de um e do outro lado da fronteira. Em Espanha, um povo épico, faz essa interpretação de forma literal e mata mesmo o touro. Em Portugal, um povo de poetas faz uma interpretação lírica e executa uma pega ao touro que simboliza apenas a sua derrota, concretizada com respeito e sem outras armas para além dos braços e da amizade dos forcados.
Aqui chegados, convidei-o a assistir a uma corrida e tive o prazer de o vir depois a receber várias vezes no Campo Pequeno. Civilizadamente, acabámos a pedir desculpa um ao outro. Eu por ter sido indelicado ao referir-me à sua profissão e ele por ter faltado ao respeito à minha cultura.
Ocorreu-me este episódio a propósito da corrida comemorativa dos 100 anos do Grupo de Forcados Amadores de Santarém.
Não era o Louvre, o Scala, ou a Broadway. Era o Campo Pequeno mas, naquele serão, a arte que ali se expôs também foi genuína. Uma atmosfera única induziu nos intérpretes uma espécie de estímulo cénico só possível na esgotada primeira praça do mundo do toureio a cavalo. E então, história, natureza, cultura, a seriedade do curro e a classe pura dos artistas fundiram-se para produzir um zénite de momentos belos numa corrida perfeita. Mas, num ambiente assim de superação, da perfeição ainda emergiu a excelência. Ao quinto touro da noite aconteceu uma daquelas raras pegas que um aficcionado espera uma vida para ver. Chama-se António Goes o forcado que a fez e um Campo Pequeno já rendido entrou em êxtase. Não havia mais nada para além daquilo e eu, arrebatado, lembrei-me como teria gostado de ali estar o meu amigo viking já desaparecido.
Mas não, não pretendo convencer mais ninguém a ir comigo aos touros. O que exijo, de forma absoluta e no pleno exercício da minha cidadania, é que me continuem a deixar ir a mim.
Joaquim Varela do Nascimento
Ervedal-Avís