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Reportagem "Combate Longe das Arenas"

Vídeo "Pegar a Vida - Combate longe das Arenas", a grande reportagem que João Ferreira, do Correio da Manhã TV, sobre o combate do dia-a-dia de Nuno Carvalho "Mata".
10 de Julho de 2013 - 14:04h Notícia por: - Fonte: Correio da Manhã - Visto: 1670
Reportagem

Vídeo "Pegar a Vida - Combate longe das Arenas", a grande reportagem que João Ferreira, do Correio da Manhã TV, sobre o combate do dia-a-dia de Nuno Carvalho "Mata".

Cada pega é uma roleta russa com o destino. Uma luta contra o touro e um duelo individual de cada forcado, contra si próprio, travado contra o medo. Frente ao touro, com a vida em risco, a sorte de um depende de todos e todos dependem de todos. Esta interdependência tece cumplicidades inquebrantáveis, percetíveis apenas por quem pisa o solo do círculo sagrado. A arena. Por tudo isto, solidariedade é uma palavra cara para os forcados. Dentro e fora das tábuas.

A solidariedade foi a corrente da vaga de fundo que varreu o mundo dos touros após a noite fatídica de agosto do ano passado, no Campo Pequeno, que atirou Nuno Carvalho, de 26 anos, forcado do Aposento da Moita, para uma cadeira de rodas. As corridas de homenagem e as dádivas anónimas realizadas, desde então, geraram mais de 160 mil euros. Muito, à primeira vista. Pouco, se se subtrair a esta quantia o valor da casa que Nuno já comprou e as respetivas obras de remodelação, a cadeira de rodas elétrica e o carro adaptado. A este ‘deve e haver’ há ainda que contabilizar os custos com despesas médicas, incluindo fisioterapia, que podem atingir os dois mil euros por mês. Contas que deixam Nuno ‘Mata’, como é conhecido no mundo dos touros, apreensivo com o futuro.

Quase um ano depois da colhida, o forcado continua à espera da atribuição da pensão social de invalidez. "Cento e poucos euros que nem sequer me dão para pagar a água e a luz", confessa. "Ao contrário do que acontece noutros países, em Portugal quem se vê confrontado com uma situação destas não pode contar com o Estado, senão vai sobreviver em condições péssimas", desabafa o agora forcado honorário do Aposento da Moita, que denuncia a existência de pessoas com mobilidade reduzida "sem recursos financeiros e sem a sorte de terem visibilidade pública a viver na miséria". Paradoxalmente, o mesmo Estado que tarda em atribuir uma pensão a quem tem mais de noventa por cento de incapacidade já recebeu mais de 25 mil euros em impostos fruto das várias iniciativas de apoio a ‘Mata’.

RECRUTA DE ALCOITÃO

Olhando de relance, podíamos julgar que estamos num ginásio qualquer onde alguém está a treinar acompanhado de um personal trainer. A expressão de Nuno espelha o esforço físico mas, simultaneamente, transborda confiança. Treina até à exaustão. Segue à risca todas as instruções transmitidas pelo fisioterapeuta que o acompanha. A cumplicidade entre os dois sente-se pela forma como Nuno reage aos incentivos constantes de André. "Anda mais ao fundo! Mergulha! Vem à frente! Tudo em Baixo! Estoira!". Os progressos são consideráveis.

Dos últimos dez meses, seis foram passados em Alcoitão. Dois internamentos de três meses cada. Na primeira passagem pelo Centro de Medicina de Reabilitação da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, o pegador de touros sofria de um estado de mobilidade zero abaixo do pescoço. Agora, prestes a abandonar o segundo período de internamento, o insustentável peso morto dos braços é cada vez mais leve. Com um peso de um quilograma acoplado ao antebraço inicia uma série de levantamentos. Depois de sucessivas repetições, encara-me com uma expressão vitoriosa e, espontaneamente, assegura que, depois do acidente, nunca pensou que seria possível fazer algo semelhante. "Fisicamente era impossível." Mas o tempo tem-lhe trazido boas surpresas. "Há coisas que a certa altura são impossíveis, mas o objetivo é fazermos tudo o que conseguirmos. Quando não é viável não dá para inventar. Se for possível, fazemos. Onde houver uma janela de oportunidade, é aí que vamos escavar."

Compara a passagem por Alcoitão como uma recruta que o preparou para a guerra do regresso ao mundo exterior. "É uma escola onde aprendemos a viver nesta nova condição. É essencial. Senão não estamos preparados para o dia a dia. Saio de Alcoitão mais forte. Tanto física como psicologicamente."

Filipa Faria, diretora do Serviço de Reabilitação de Adultos, atesta a evolução favorável apesar da gravidade da lesão. "Neste segundo internamento já adquiriu algum movimento ao nível dos membros superiores. Por isso já consegue conduzir a cadeira de rodas elétrica com o braço. Algo que não conseguia. Só com a cabeça. Isso já foi uma boa evolução. Também já consegue alimentar-se sozinho. São pequenos passos que vão permitindo um maior ganho de autonomia e de autoconfiança."

A poucas horas de abandonar Alcoitão rumo ao mundo exterior, a avaliar pelas declarações, ‘Mata’ não pode estar mais seguro e confiante. "Estou pronto para pegar a vida. Vou encarar a vida de caras. Estou pronto para o que aí vier."

REVIVER A TRAGÉDIA

Nuno vestiu a jaqueta do Aposento da Moita pela primeira vez em 2004. Foi considerado a revelação do grupo em 2007 e nomeado forcado do ano em 2009. Aos 26 anos, estava no auge da carreira. "Este é o momento em que a minha vida mudou", diz, com uma frieza desconcertante ao ver as imagens da colhida. Está tenso e perturbado. Frente a frente, com o outro Nuno, o seu antigo eu, assume uma tranquilidade reveladora de que já acertou contas com o destino. "Tive momentos em que pensei que estava a ficar maluco. Tudo parecia complicado e obscuro. A minha pior batalha foi contra mim próprio. Contra a minha mente. Não contra os outros nem contra a vida. A vida é assim mesmo."

Surge ‘alguma vez pensaste em desistir?’ Nuno responde prontamente: "Sim. Mas o que me faz pensar em desistir é mesma coisa que me faz continuar. Temos de bater no fundo para nos voltarmos a erguer. Ninguém se quer levantar se estiver de pé." A cadência pausada potencia o tom grave da voz. "Tento ser um lutador. Se calhar não sou tão forte como as pessoas pensam. Tenho dias pavorosos. Tenho medos. Tenho momentos de choro, mas tento."

Uma ligeira hesitação no discurso acompanha um redobrar da atenção com que fixa as imagens projetadas na parede. São imagens que antecedem a investida do touro. Homem e animal estão em rota de colisão separados ainda por algumas dezenas de metros. As imagens emprestam-lhe palavras. "Um forcado quando vai ao touro vai tentar a sua sorte e não sabe quem vai vencer. Se é o touro ou se é o forcado. Mas tenta. Eu estou a tentar vencer esta batalha." ‘E vais vencer ou não?’ "Já venci. Posso voltar a cair. mas até agora venci. Estou cá. Tenho os meus amigos, a minha família e os meus sonhos. Enquanto mantiver os meus sonhos vivos estou a vencer. Quando os meus sonhos deixarem de fazer sentido, aí perdi."

SEXUALIDADE SEM TABUS

Carina Rodrigues tem vinte e quatro anos. Conhece o Nuno desde pequena, do tempo da escola. Em miúdos namoriscaram mais do que uma vez. A relação atual, o namoro sério, oficial, dura há cinco anos. Trabalha numa loja de roupa de crianças no Fórum Montijo. Viu o namorado ser colhido pelo touro na televisão. No hospital, Nuno pediu-lhe para o deixar. Para seguir a sua vida. Estava tetraplégico e não queria ser um entrave. "Na altura só me apeteceu bater-lhe", recorda Carina. "Gosto muito dele. Amo-o. Não é por isto que o vou deixar. Se calhar o nosso amor até ficou mais forte."

Reconhece que o infortúnio do companheiro alterou profundamente a sua vida. "Mudou tudo. A vida agora é Nuno, Nuno, Nuno, Nuno. Trabalho e Nuno. Não há muito mais para fazer. Nem tempo para isso." Na casa de piso raso, em ruínas, que compraram por quarenta e nove mil e quinhentos euros, na zona velha da Moita, entusiasma-se com os planos de remodelação. Viver com o Nuno é a concretização de um sonho. Dela e dele.

Outro sonho partilhado passa pelos filhos. Um pelo menos. Dois se a vida o permitir, que as dificuldades são muitas. Paternidade e maternidade são questões-chave da valência de Disfunção Sexual de Alcoitão. A consulta não é obrigatória. Depende de um ato de vontade de doentes e respetivos companheiros. Glória Batista, responsável pela consulta, explica que a abordagem inicial passa por uma valorização dos "afetos, do amor, da comunicação e da entreajuda". Elementos fundamentais para que a vivência da sexualidade possa ser gratificante.

"É uma redescoberta. Passa por olharmos para o homem e para a mulher que está à nossa frente como um ser que não é apenas físico." Homens e mulheres vítimas de lesões medulares sofrem uma alteração da perceção do prazer. Os homens são confrontados com problemas de disfunção erétil e ejaculatória. Nas mulheres há uma diminuição da lubrificação vaginal.

A disfunção erétil não é um problema difícil de resolver. "Existem muitas soluções no mercado", sublinha Glória Batista. Para combater a disfunção ejaculatória, numa percentagem muito significativa de casos recorre-se a um vibroestimulador. "Assim que achamos que estamos com um esperma de boa qualidade, acionamos o contacto privilegiado com a Maternidade Alfredo da Costa e iniciamos o processo de procriação medicamente assistida", refere a médica fisiatra de Alcoitão. As mulheres com lesões medulares não estão impedidas da hipótese de procriar, desde que devidamente acompanhadas, porque será sempre uma gravidez de risco.

Sem qualquer pudor, Nuno Carvalho aborda o tabu das alterações da sexualidade nos casais onde um dos parceiros sofre de lesões medulares. Afirma ter uma vida sexual ativa. Um ponto psicologicamente determinante para uma consolidação emocional. "Há coisas que mudam, mas reaprende-se a viver a sexualidade de outra forma. Se calhar ganha-se noutros aspetos. Damos importância a pequenos detalhes que não valorizávamos anteriormente. As coisas mudam, mas havendo um bom relacionamento de parte a parte, conversando, sem tabus, consegue-se fazer com que, nessa vertente, a vida continue."

JUNTOS PARA A VIDA

"Sempre ao teu lado para o resto da vida." Foi este o brinde de José Pedro Pires da Costa a Nuno na corrida de angariação de fundos que a Moita organizou ao filho da terra, em março. A tradicional dedicatória, que os forcados fazem antes da pega, sintetiza na perfeição a relação entre os dois. Zé Pedro, atual cabo do grupo, é um dos melhores amigos de Nuno.

Em agosto do ano passado foi o primeiro a chegar perto do forcado, que jazia estendido na arena do Campo Pequeno. "Nuno, levanta-te, vamos ao toiro", disse-lhe. Na resposta, Nuno, perfeitamente consciente, respondeu que não podia. "Estou f*****. Estou tetraplégico." Zé Pedro entrou em pânico. "Foi a primeira vez que aquilo aconteceu na minha vida, e logo com um dos meus melhores amigos. São momentos que custam a ultrapassar."

Desde a primeira hora, José tem dado todo o apoio ao companheiro. Alimenta-o, garante-lhe a higiene. Está ao seu lado. Não o faz por obrigação. Fá-lo, simplesmente, porque tem a certeza de que, se os papéis se invertessem, o ‘Mata’ faria o mesmo por ele. "O Nuno tem momentos maus? Claro que tem. Mas também tem uma força enorme em querer superar todas as adversidades." Confrontado com a atitude dos amigos, Nuno quebra. Pela primeira vez em três meses, desde o início da reportagem, as linhas defensivas caem por terra. A chorar, agradece o apoio dos amigos. "É isso que se aprende nos touros. Não se aprende só a beber copos. Aprende-se a dar a vida pelos amigos e a carregá-los às costas quando eles necessitam. Os mais próximos de mim sabem que eu faria o mesmo por eles."

Frases de esperança rasgam os corredores de Alcoitão. Uma delas podia ter sido inspirada pelo drama de Nuno: "O Mundo é redondo e o lugar que parece ser o fim poderá também ser o princípio.

O GRANDE DESAFIO É VOLTAR AO MUNDO EXTERIOR

As lesões medulares têm impactos profundos na vida dos doentes e de todos os que os rodeiam. O principal objetivo da reabilitação de Alcoitão é "recuperar os utentes como um todo. Reintegrá-los na família, na sociedade e, se possível, na vida profissional", enfatiza Glória Batista, fisiatra do centro. O primeiro contacto com o mundo exterior é duro. Em Alcoitão, os utentes estão num ambiente protegido. Lá fora há barreiras arquitetónicas, responsáveis por quedas, e, por vezes, confessa quem o sente na pele, ainda há algum preconceito para quem anda de cadeira de rodas. Filipa Faria, diretora do Serviço de Reabilitação de Adultos, elege o "ir lá para fora" como "o grande desafio". Para ajudar os utentes nesta fase de transição, os profissionais de Alcoitão escreveram um livro com resposta a todas as dúvidas que possam surgir a doentes e respetivas famílias. Está acessível a todos no site da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

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